Há que honrar aqueles miúdos...

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Eram dois miúdos aí dos seus doze, treze anos. Nunca tinham surfado, nem conheciam nenhum surfista e no tempo em que tinham essa idade não havia como há agora a imensidão de escolas de surf. Tudo o que tinham era um quiosque no centro da cidade e o dono que os deixava folhear as revistas de surf porque não havia dinheiro para elas.
Uma vez conseguiram juntar algumas moedas e deu para comprar uma. Era do Brasil. Tinha meio ano de atraso.
Nas páginas de dentro tinha um texto que se chamava “Qual é a sua missão”. Umas páginas à frente tinha uma reportagem da vida do Pedro “Águia” Muller.
Para os miúdos aqueles minutos no quiosque (e finalmente quando conseguiram comprar uma revista) eram o seu êxodo, como se fossem para outro patamar de liberdade e pudessem ter mais de perto o sonho de conhecerem um dia algum surfista, eles próprios a caminharem sobre as águas.
Era essa a sensação deles. Sem saírem do lugar de sonhos onde estavam, sonhavam ainda mais, sentiam-se o Moisés a sair de um sítio e a entrar noutro. O mar abria-se, como lá diz o livro do Êxodo.
Era como se descobrissem um novo mar – o surf.
Como qualquer êxodo com classe, seja ele do Moisés ou do Marley, estas histórias são histórias de liberdade: uma força que nos impulsiona a remar, a levar com ondas na cabeça até chegar ao point break.



Como qualquer êxodo com classe, somos levados para a liberdade. E esta história de liberdade daqueles dois garotos começa a responder àquela história do artigo no início que tinha por título “qual é a sua missão”.
Era a isso que eles estavam a responder.
Decidiram poupar dinheiro para comprar a sua fuga. Depois de muito tempo, juntaram seis contos cada um e, a meias, compraram uma prancha em segunda mão que o homem da loja lhes tinha dito que tinha pertencido a um campeão nacional. Eles não faziam ideia de quem era o campeão, mas mesmo assim aquela era a ponte para a eternidade. Baptizaram-na de Rosa Maria, em homenagem às mães e depois, a cada Domingo, às sete horas da madrugada lá iam numa velha carrinha Canter do pai de um deles virados à praia, cheios de frio em cada um dos poros.
Era o seu êxodo tornado realidade. Entravam na água, cada um à vez, de calções e t-shirt para dar a impressão que eram surfistas a sério. Não havia dinheiro para o fato nesse tempo, nem havia escolas onde os alugar.
Aprendiam com a luta, o mar levava-os e trazia-os, abria-se e fechava-se, rebentava-lhes na cabeça, mas os garotos sempre a acreditar que aquilo era um caminho para a Liberdade – um êxodo ou uma missão por assim dizer.
O Pedro “Águia” Muller dizia isso na entrevista da revista que tinham comprado. Teve algumas lesões, mas atirava-se.
Um dia casou e a mulher da sua vida faleceu com o nascimento do primeiro filho. Foi a maior lesão da vida. O mundo desabou-lhe em cima, mas qual fénix reergueu-se das cinzas e foi à luta, fazer da vida uma história bonita de fugas para a frente e para trás, para os lados, nunca deixando que o medo o paralisasse.
É preciso coragem para isto. É preciso medo também, daquele que nos mete os pêlos em cima e nos faz sentir vivos, mas que nunca nos consegue paralisar, porque há uma vontade que lhe é maior.
Talvez fosse isso que lhes dava pica, aos garotos, de manhãs frias de Inverno fugirem por momentos da vida e se fazerem à estrada, de tentarem sem parar de aprender a caminhar sobre a água.
Sei que agora são graúdos, não são campeões mas colocam-se de pé e estão lá o tempo suficiente para perceber a magia de ver o mundo daquela perspectiva, drop abaixo, para a esquerda ou para a direita, dentro de tubos ou fora deles, com mais ou menos técnica.

Sei que os garotos ainda hoje quando acaba a onda e mergulham, ou mesmo quando é a onda a acabar com eles e os atira para o mergulho, aqueles segundos que passam debaixo de água a suster a respiração, os passam a sorrir, já de fato de surf de uma marca qualquer, nunca se esqueceram dos garotos que foram e de que para fugir, da rotina ou do quotidiano basta viver como se o fizessem na água.
Seja nalguma surf trip para longe, seja com a prancha partida ou os pés enchouriçados de espetos dos ouriços do mar, seja na surfada antes do dia de trabalho, ou na corrida das ondas ao fim dele, os garotos sorriem sempre porque são livres como eram os miúdos que sonhavam sê-lo há muitos anos atrás na banca daquele quiosque no centro da cidade.
A mim resta-me parar de escrever agora, e ter consciência do privilégio que isso é, mais do que isso é levantar-me e fazer o meu Êxodo, todos os dias, a cada dia: pegar na prancha e mandar-me às ondas... as do mar, e as da vida.
Há que honrar aqueles miúdos...


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* texto dedicado a Paulo Fontes, um dos miúdos...


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