O mar onde eu nasci










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Tu és um Homem de viagem. E aqui vejo água, vejo o mar – continuou o velho - A terra está carregada das leis, mandos e desmandos. O Mar não tem governador.  Quem constrói a casa, não é quem a ergueu, mas quem nela mora. (...) Nós os da Costa somos habitantes não de um continente, mas de um oceano.
Mia Couto

Todos temos uma terra onde nascemos. Nem todos temos outro sítio, mas aposto que todos temos uma onda memorável, uma vertigem, a primeira, do primeiro drop que fizemos e caímos a seguir porque a emoção não nos deixou ter concentração para fazer o resto como devíamos fazer. Vemo-nos a descer, a ficar sem fôlego e sem chão por baixo e, de repente seguimos, para um lado ou outro, direita ou esquerda, ou mais provavelmente em frente porque quando se aprende e não se tem medo, mandamo-nos para a frente. Ou ainda mais provavelmente como disse atrás, para baixo das ondas, num mergulho em que andamos às voltas debaixo de água, meio aflitos, mas de sorriso largo porque acabámos de viver ali qualquer coisa de magia. Acabámos de nascer – no que ao surf diz respeito...
O dia em que isso acontece, não se esquece mais.



O Mar onde eu nasci foi aqui, em Aveiro. Tinha doze ou treze anos e um amigo. Tinha mais, mas este é que me pôs areia na cabeça e água salgada nas veias. Ficávamos horas na praia a ver os surfistas, a tentar perceber como é que aquela classe de gente fazia, se punham de pé e caminhavam pela água fora, como se fossem levados pela mão de Deus – como a Dona Marta, da Rocinha, a favela do Rio de Janeiro, chamava às ondas por onde o filho pequeno andava lá em baixo frente à Barra do Tijuca e assim crescia longe dos problemas da pobreza. Mas isso é outra história, é outro ritmo...

De volta a Aveiro, conseguimos juntar seis contos cada um e comprámos uma prancha em segunda mão por doze contos, ali no Pedro do Pote de Mel, na Barra, não a do Tijuca, mas a de cá, de Aveiro.
Não havia cá fatos nesse tempo. Não havia dinheiro para eles. Andávamos em baixo de patrocínios e uns calções e uma t-shirt para disfarçar o frio que a juventude da idade ainda não sentia nesse tempo, tinha de servir. Íamos à vez para o mar, o outro ficava na praia a ver, ou ia a nadar para junto do outro que ia a remar. E era ali, para os lados da Costa Nova do Prado que tentávamos imitar o que víamos os prós fazerem. Íamos para a Costa Nova, não por ter ondas melhores ou piores, mas porque não andava por lá ninguém e havia aquela secreta vergonha que nos vissem a não fazer uma única série em condições. Isso e porque se ela viesse, a onda, nós íamos em frente ou para os lados, para onde quer que calhasse ela nos levar. Corríamos sempre o risco de passar por cima de alguém. Dropinanços que líamos nas revistas que davam sempre pancada a seguir.



Demorou tempo até chegar o dia em que nascemos. E no fundo da minha memória, nem sei se foi na Rosa Maria, o nome da prancha de doze contos que foi baptizada com o nome das nossas mães, em que tentámos dias sem conta perceber a arte de caminhar na água.
Lembro-me da persistência que é preciso. O surf é daquelas formas de vida que nos ensina o valor de não desistir da vida, por muito que ela demora e mostrar resultados. Não vai muito tempo em que conheci um inglês, sôfrego na água, – I’m a beginner – dizia-me ele.. Nunca podes desistir aconteça o que te acontecer – respondia-lhe eu.
Muita água salgada bebida depois, muitas madrugadas e frio depois, chegou o dia estrondoso da vertigem do nascimento de mar. O dia em que se vê tudo de lá de cima, da onda, de pé sobre ela, dentro dela.
Aconteceu naturalmente, sente-se a remada a compensar, a velocidade a acompanhar. Colocamo-nos de pé.
Nessa altura, a do nascimento, já éramos três. Os dois amigos e a namorada de um deles. Esguia e bonita, muito mais leve, para ela tudo era meio natural dentro de água, como se estivesse em casa. Julgo mesmo que podemos chamar assim ao Mar onde nascemos. A nossa casa. Sentimo-nos sempre benvindos quando chegamos a casa, encontramos quem nos ama. O sítio onde moramos, mora em nós. Está sempre pronto para nos receber, um acolhimento caloroso, mesmo que a água esteja gelada, nunca falta o tapete estendido com todas as letras, benvindo...


Hoje, pese embora a dedicação, a evolução técnica não é muita, ao contrário da felicidade que as ondas provocam. De facto é isso talvez o mais importante. Desculpo-me com as direitas omnipresentes nas nossas praias. Para um goofie como eu nunca são o melhor que há, principalmente depois da sorte de surfar esquerdas certinhas e de brincar onda fora.
A miúda, que terá sempre este nome carinhoso mesmo daqui a sessenta anos e muitas rugas em cima, metia impressão como apanhava qualquer onda que viesse, como se passeasse nela, como se tivesse sempre andado por ali. Era regular, via as ondas de frente, foi vencendo os medos. É sempre fácil isso quando se anda de mãos dadas. Isso e o jeito natural faziam com que tudo lhe parecesse fácil, harmonioso, com o sentido que se sente quando tudo está no seu lugar. Venha a tempestade que vier, avançamos!...

O vício de ver as surfadas do pessoal para aprender na altura em que não se sabia nada, continuou, mesmo depois, na altura em que está sentado na prancha, lá fora à espera do set. O mundo atrás da linha das ondas parece outro. Estamos protegidos por aquela barreira, intransponível a tudo o que não queremos que passe quando queremos estar ali, sozinhos com a nossa alma, a gémea ou mesmo só a nossa parte. Parte do surf é isso também – estar por ali sentado - o mundo que se vê é diferente, mais harmonioso, numa ordem lógica e natural, mas que nunca se repete. Não há duas ondas iguais. Olhamos para terra como se não fossemos de lá, e nada mais parece muito importante ou problemático quando se vê daquela perspectiva – sentado na prancha, a subir e a descer, embalados como no berço, como um barco à deriva, mas com a sensação de nos sentirmos seguros e protegidos, nunca perdidos. Sorrir por dentro é inevitável.

É o mar onde nascemos. A magia que é correr a onda, mas também estar lá sentado à espera dela, a ver o sol, a ver os outros, a testemunhar e a viver a alegria pura.
Uma tarde houve em que fiquei à conversa com um surfista para cima de três horas. Era uma tarde rara em que éramos dois na água. Só dois. No intervalo das ondas falávamos de surf, da vida, do país, do frio, das nuvens, de tudo... Foi aí que aprendi que nas pranchas pequenas temos de dar uma remada forte mesmo em cima da onda, um take-off poderoso. Com as pranchas maiores, a remada tem de começar antes. Quando a onda chega já temos de levar alguma velocidade.

Já era noite quando saí da água e percebi que estive ali com o meu melhor amigo daquela tarde e que nem sequer lhe soube o nome ou ele o meu. Estranho isto, de estarmos com alguém, como família se tratasse, e nem sequer lhe sabermos como que lhe chamam. Oxalá ele continue por aí a surfar no mar e na vida à grande. Nunca tive uma aula de surf como hoje há muitas, mas calculo que sejam assim, como aquela tarde de conversa serena à porta de casa. Os milagres do surf. A naturalidade como acontece relação com os outros, com o mar, como se enfrentam os desafios e as quedas, os mergulhos, as litradas de água que se engolem, os enrolanços debaixo de água sem sabermos para onde fica o norte depois das quedas e finalmente, o encantamento depois de uma onda bem rodada. O êxtase e o desafio, tudo junto e em grande força.


Às vezes essa força vem cá para fora de água. Recordo uma tarde de Verão, em Aveiro, no mesmo mar onde nasci. Andava tranquilo e com boa companhia na água que parecia calma. (É possível andarmos mal acompanhados dentro de água?) Ouvi um grito. Com a praia lá longe cheia de gente, não é de estranhar nem é incomum ouví-los. A miúda que andava sempre comigo disse-me que parecia alguém a pedir ajuda. Ficámos alerta, apesar de todo o ruído de longe e vimos assim, ainda mais para trás do que nós, um ponto escuro à tona de água.
Nadámos para lá e mais de perto percebemos um esbracejar aflito. Continuámos a remada, confesso que chateado, porque cansado. E o ponto que vimos, era mesmo um rapaz, dos seus quinze anos que mais parecia ter vinte pelo tamanho.
Não sabia nadar e foi apanhado num agueiro. Num repente viu-se sem pé, longe da praia. Junto dele já, tranquilizámo-lo e trouxemo-lo para cima da prancha. Mais calmos disse-lhe que íamos demorar a chegar à praia, mas que íamos chegar. Já não tinha grande força, nem eu nem ele, mas houve ali sempre uma mão e uma voz ao lado a providenciar toda a força que foi necessária.


Essa coragem que nos dá quem nos ama faz-nos sempre descobrir forças onde já não as temos e seguimos, para lá do que podemos, sempre.
Já perto da praia, o nadador-salvador que devia pensar que eu era um ás arrancou-me da prancha e concluiu o salvamento. Eu esgotado, fui trazido o resto que faltava e já na areia sentei-me com os pulmões junto à boca à procura de ar. Nunca sozinho. Quem me emprestou a coragem continuava ao pé de mim.
Juntou-se a multidão do costume à volta do rapaz e de lá saiu um senhor que veio ter comigo e me deu o abraço mais apertado e forte que alguma vez alguém me deu. Era o pai do filho salvo. Não lhes soube o nome. Disse-me obrigado pela vida e de facto, foi ali junto ao mar onde nasci que percebi que um Pai não tem limite no Amor a um filho. Já sabia disso, já o tinha sentido com o meu Pai. Mas nesse dia quando o vi de novo, o olhar foi diferente, de uma certa cumplicidade e gratidão pela vida dedicada.


Gratidão que eu senti também anos mais tarde por outro desconhecido que se torna família.
Já todos imaginámos o que seria a inóspita desgraça de um dia, longe da areia, nalguma onda mais dura, o shopleash, cabo ou corda que nos segura à prancha, cortar-se.
É uma coisa que acontece por vezes, geralmente aos outros, mas algum dia, remoto, pode acontecer a nós. E o dia remoto veio.
A Prancha é como um barco de apoio, está sempre ali, nos dias de chuva, de sol, nos dias de vento agreste, nos dias calmos, nos flats ou nas ondas duras. Uma prancha é como um Amor perfeito, há sempre uma comunhão sem palavras, uma dependência saudável. Mas como nos Amores perfeitos, o cabo pode partir-se.
O pânico é a pior coisa. Podemos perder-nos e pode a prancha perder-se nos rochedos e partir-se de vez.
Nessas situações limite, o fato boia e qualquer surfista o sabe fazer também, mesmo que pense que não.
Podemos nadar, nadar tranquilamente para terra, meia hora, uma hora. Se cansado. Pára. Aproveita para olhar para o céu e ver a vida que levas. Nada de crol, de bruços, de costas, do que seja. Conta os pirolitos de água salgada que já bebeste. O tempo passa e alguém chega, nem que seja a areia para onde as ondas te levaram.
Se houver alguém na água, dá sempre uma ajuda, somos comunidade.

Depois há que ir buscar a prancha, descansar em silêncio contemplativo e refazer o leash, esse fio da vida, que nos liga como se de almas gémeas a prancha e nós nos tratássemos, fiéis, sempre ali para tudo, o bom, o mau, a saúde e a doença, a riqueza e a pobreza, amando como o outro quer ser amado.
É assim, nesta dupla, que se conseguem momentos de pura magia no respeitoso mar. Mas como nos Amores perfeitos, o cabo pode sempre refazer-se.
Não precisei de nadar. Bastou-me acenar a um desconhecido que andava no mesmo set e ele veio-me buscar, levou-me quase até à praia e ainda me foi buscar a prancha. Não se vê esta bondade todos os dias, pelo menos fora de água. Disse-lhe da minha gratidão. E também o nome dele, não o soube.
Tudo na vida devia ser como o surf. Não há ferida que não sare, não há pé que não volte ao sítio, não há resina que não concerte uma tábua, não há nunca uma última onda!


Um dia vou ter algumas rugas nas mãos, cabelo cor de céu no outono da vida, e os joelhos vão estalar antes de dobrar. Nessa altura, vou ter muitas histórias para contar e uma prancha 8'3'' ou talvez maior ainda, mas sei que há um sítio, aquele onde nasci, que vai lá estar sempre com um tapete estendido com as letras a espuma salgada, a dizer “benvindo” a toda a gente que por aqui vier. Duas coisas, nesse tempo como agora, nunca vão faltar... a magia do surf e uma onda mais para quem vier. Benvindos a Aveiro...

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