Enfrentar as ondas, faz-me crescer na vida
O
Francisco é um rapaz dos seus catorze anos. Levanta-se cedo todos os dias para ir
para a escola. Vai sempre a pé. A casa onde vive não fica longe e o bairro é
amigável, as pessoas conhecidas. Não vive com muito. Vive com o essencial, no
essencial. Vai estudando, vai-se esforçando por ter notas para passar, com
positiva tudo, para saltar bem para o ano lectivo seguinte, ainda que não seja
das suas coisas preferidas, o estudo.
A
primeira vez que o vi, tinha o rosto tímido, próprio de quem tem um mundo
dentro dele e muitas vezes se entretém aí dentro. Não é imaginário nem de
sonho, só por si, daqueles que não têm nada que ver com a realidade. Porque o
que ele ali pensa e imagina, são os sonhos e as possibilidades com que a vida
se pode pintar no futuro. Futebolista, médico, professor. Tantas coisas que o
difícil será mesmo escolher, focar-se e ir direito ao assunto. Tem tempo ainda
para isso. Para agora, a rotina segura de cada dia, junto com a família e os
sítios por onde passa. Esses são os esteios da sua vida.
O
surf nunca lhe tinha passado pela cabeça como me disse nos últimos dias, mas
viu-se no mar, de uma semana para a outra, a deslizar ondas fora, com uma
sensação de magia indescritível, como se tivesse todo o poder do mundo e nada
lhe fosse impossível de fazer. Ficou-lhe ali uma dependência saudável. Se
pudesse vinha todos os dias.
Somos
dois.
Ao
fim do dia, é no percurso entre a escola e a menin’arte, o atelier das
Florinhas do Vouga no Bairro de Santiago, que o Francisco vai pensando e
sonhando. Todas as tardes dos dias de escola, o trabalho acaba por ali, até à
hora do jantar, sensivelmente. Com os dias grandes da Primavera, era mais
difícil, com tanta coisa boa para fazer lá fora na rua. Estuda e tem
explicações, acompanhado de estudantes universitários, voluntários do Centro
Universitário Fé e Cultura. Também eles, já universitários vão passar ali dois
fins de tarde cada um, por semana, numa roda de gente que mantém com a Rosa
Maria, das Florinhas, o centro aberto todos os fins de tarde com actividades
pedagógicas, estudo acompanhado, explicações. Ninguém sai dali com trabalhos de
casa por fazer. Isso dava outra história. Continuemos por aqui, perto do mar.
É
preciso fazer estes miúdos sonhar em grande, pensámos. Nada melhor para
alavancar isso que o contacto com o mar, deslizar das ondas, numa certa
harmonia com a natureza e a montanha de energia que desliza em forma de água, a
cada onda, nunca nenhuma igual a outra. Alguma coisa que os fizesse superar-se.
Quando
as pessoas se juntam, só pode dar em milagre.
Foi
numa conversa de café com o Leonel “Colas”, o pai carinhoso de uma menina de
ano e meio, que escolheu para si uma vida tranquila. No Verão anima um pequeno
bar dos apoios de praia e uma escola de surf, a Surf’Aqui. No Inverno conserta as pranchas de surf que por ali se
dão no mar maior, de ondas grandes e friorentas para que é preciso ter paixão,
uma boa dose de fé e coragem misturada com a inconsciência de quem se testa no
seu limite.
A
alcunha de colas não vem de colar pranchas,
como toda a gente pensa. Quando era mais novo e começou a surfar, tinha um
jeito peculiar de se colar à tábua sob os pés.
- Para esses miúdos, até fazemos isso de borla
pá. – Foi coloquial a frase mágica que tornou possível este pequeno
projecto.
Quando
as pessoas se juntam...
Daí a uma reunião de pais, foi um passo e o Francisco estava nela. Tímido como é o seu estar normal, mas de olhar muito atento. Só abriu a boca quando a mãe, depois de todas os esclarecimentos sobre como tudo ia decorrer, lhe perguntou se ele queria ir, num tom meio de ralhar, meio de orgulho, como todas as mães sabem fazer. Disse que sim, envergonhado. E a mão assinou o papel. Aí abriu muitos os olhos e deu um sorriso daqueles, que depois repetiu a primeira vez que se meteu de pé, sobre a água, com uma prancha debaixo dos pés.
No
princípio parecia-lhe difícil, remar deitado na prancha, passar para lá das
ondas, até chegar ao sítio certo onde esperar por ela, pela certa. É sempre uma
arte esperar e reconhecer a onda certa. O desequilíbrio era constante, a água
era estranha, vinha de um lado, do outro. Não parava.
Com
esforço, virou-se a elas e a espuma ia-o empurrando. Daqui a tentar meter-se de
pé foi outro rosário de tentativas, mas ao segundo dia, o milagre de caminhar
sobre a água aconteceu.
- Nunca podemos desistir das ondas – dizia ele no último dia já do curso. Já
a timidez era uma memória distante e o riso permanente.
O Bruno e a Raquel são mais novos que o Francisco. Estudam diariamente na menin’arte também e com bons resultados. São um pouco mais competitivos que o easygoing life do Francisco. Sempre concentrados desde os exercícios na areia ainda na primeira aula do primeiro dia.
Impressiona, tão focados que miúdos, apenas miúdos, estão naquilo que fazem. Nós adultos, descuramos tantas vezes esse potencial deles porque estamos ocupados mais com formas que com conteúdos, mais com papéis que em pessoas.
Tanto
um como outro não deixaram sequer chegar o segundo dia de aulas para se meterem
de pé e deslizar onda fora. Foi ao primeiro. Eu que demorei uns anos frios de
Inverno a conseguí-lo, num tempo em que não havia escolas de surf,
mistura-se-me a irritação com o orgulho.
- É uma sensação estranha a princípio, porque
não estamos habituados a ver o mar aos pés, tão baixo. A perspectiva é
diferente de lá de cima, parece que somos muito mais altos e conseguimos correr
em cima da água. Foi muito bom. – Tão concentrado como eloquente, o Bruno
contagia de entusiasmo. Não pára um segundo dentro da água.
Porque
será que dizemos tantas vezes não consigo,
quando o natural parece ser mesmo o conseguirmos.
Para
além dos mais pequenos, havia outros de dezasseis para cima. Alunos da Escola
Secundária Homem Cristo, vieram ajudar. O Ricardo, nos seus dezoito anos, além
da escola e das obrigações, sempre que pode – mar. Surfar. Ele como os colegas
vieram ajudar a escola de surf a apoiar na areia e na água, cada um conforme o
que soubesse e pudesse. Ao primeiro dia, quando cheguei à praia, já estava lá à
espera. Ao segundo dia disse-me que ia tirar o curso de professor de surf.
Dizia que a satisfação dos miúdos a aprenderem e a conseguirem era uma coisa
impagável. Ensinar alguém a surfar, para ele, era dar aos outros aquilo que de
mais precioso tinha. Dava o melhor de si mesmo, dava-o aos outros, com tudo o
que tinha e sabia. Notava-se a calma com que explicava as coisas dentro de água
enquanto cuidava da segurança de quem aprendia dele. Tem muito de vocação isto
o que notava no rapaz, sem medos e sem limitações. O não conseguir não vinha
ali no dicionário dele e parecia querer mesmo ensinar isso aos outros.
Tem
muito de Fé também, de acreditar, de Amor este processo de persistência. Um pai
que encaminha um filho nos primeiros passos. Aqui a diferença era o meio, a água. A paciente persistência e
encorajamento eram em tudo semelhantes ao resto que temos a alcançar na vida.
Doze
pequenos surfistas nasceram nestes dias. Num baptismo de água salgada,
aprenderam que nunca se pode desistir das ondas, como dizia um, da vida, como
entenderam todos. Persistência.
Essa
é a lição do Francisco, do Bruno e da Raquel, da Liliana, da Maria e do Daniel
e de mais alguns que durante uma semana se desafiaram a si mesmos e com
dedicação titânica conseguiram o pequeno milagre. Agora acreditam que podem
também fazer magia das suas vidas mais, ou menos, privilegiadas, deslizar sobre
ela, como fizeram no mar. Quando as pessoas se juntam... até sobre a água
caminhamos... quanto mais.
in jornal Correio do Vouga.
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