Gostar da Vida
# texto escrito para a Soup Surf mag. edição de Verão
para a Buga, in loving memory
É fácil a um surfista gostar da vida.
Contemplo essa
verdade à medida que os dias vão crescendo, o verde vai ficando mais verde e o
azul do mar mais azul, mais translúcido.
Seja ele de onde
for, tenha ele o tom de pele que tiver, seja homem ou mulher, tenha dez ou
oitenta e nove anos de idade, seja rico ou seja pobre… é fácil gostar.
Nem saberei bem distinguir o que será um
surfista pobre, como se isso fosse um paradoxo inexistente. Quem desliza sobre
as águas, conhece essa sensação, é por ventura dono da maior riqueza do mundo.
É fácil, portanto, a um surfista gostar da vida, andar de bem e sempre que não
o ande, ele lá sabe a direção a tomar para ir buscar a catarse necessária... a
próxima onda, que nos faz andar, como se a procura não terminasse nunca e a
seguir viesse sempre uma mais perfeita que a anterior.
É fácil a um surfista gostar da vida, ter-lhe apego e devoção.
Gostamos do mar
encrespado e ondas fortes, daquele vento frio e duro, cortante que se sente
quando se olha para o mar de frente, com respeito, à procura do sítio certo
para onde temos de remar. Gostamos dos dias de chuva, escuros, que replicam no
mar o efeito magnífico de uma cascata sob o céu onde nós e a nossa prancha
somos um ponto como os da chuva que
se fundem do céu, na água do mar, somos um único ser em movimento e harmonia.
Gostamos do mar grande, daquele que nos mete medo e do de Inverno, que nos leva ao lado mais inóspito da natureza. Um medo saudável, daquele que nos faz andar e não nos
paralisa, que nos faz vivos,
porque temos consciência de que o contrário pode acontecer.
Estranha sempre a
sensação de turbilhão, de irmos no meio dessa energia como se não fôssemos
donos de nada, nem sequer da nossa vontade. Começo a nadar para onde eu julgo
ser a superfície, mas ela não chega. Puxamos, esticamos o fôlego até mais
não dar enquanto rebolamos à vontade da onda
sem saber onde fica o norte ou onde fica o céu.
Sei que esta
angustia é própria de quem anda nestas coisas. De vez em quando acontece a quem
arrisca. O surf é uma vida de constante superlativo absoluto. Medo absoluto,
êxtase absoluto, magia absoluta.
E no entanto, a
superfície chega e inspiramos com força, com a mesma confiança que o fizemos no
dia em que nascemos.
Gostamos de
respirar. Não conheço quem melhor tenha essa consciência. Gostar de respirar.
Vemos isso como um privilégio no momento em que chegamos finalmente à superfície e inspiramos fundo. No instante a
seguir estamos de novo na prancha a remar para a próxima.
É fácil a um
surfista gostar da vida, ter paixão por ela.
É fácil gostar de
tudo, de todos os mares e de todas as condições. Um dia sair de água e entrar
no duche quente no conforto de casa, outro dia, mudar de roupa junto ao carro
nalguma paragem longínqua e agreste.
É fácil gostar do
desafio inóspito, do medo que ele provoca mas enfrentá-lo de alma e coração.
E é fácil gostar
do mar duro, do vento que corta o rosto sem piedade, mas é fácil gostar do
oposto que agora aqui vem e se torna presente. Os dias maiores, cada vez
maiores da primavera e do verão... Com eles chegam as doces e tranquilas
surfadas de fim de tarde, as esplanadas em boa companhia, as noites frescas e a
brincadeira com a garotada no meio da rua...
É fácil gostar do tempo das flores e das cores, das ondas pequenas e indolentes, das pranchas maiores com que pintamos o ar cada vez que conseguimos atirar o rail para fora, espalhando água como quem espalha magia e com o sol pintar a primavera com as cores de arco-íris para o céu. Sair da água e dar por nós de rosto torrado antes de toda a gente, como se a vida para nós chegasse primeiro.
Não é que sejamos
mais que os outros, ou menos. Como medir isso? É a devoção com que se vive. O
entusiasmo que se tem enquanto vestimos o fato de neoprene antes de entrar na
água fria ou mesmo, de correr para o mar apenas de boardshorts e tábua debaixo do braço para a água morna do mar nalguma
paragem longínqua, com fundo de recife.
A vida não se
adia, é feita de momentos que não têm tempo nem espaço. Não se condensam nem se
prendem. São!... e pronto.
Superlativo absoluto mais uma vez e sempre um Presente.
Porque agora o tempo
é outro. O do sol, do mar mais pequeno, de ensinar os mais novos também, de
lhes inculturar a devoção e a paixão por tudo, o tempo mais demorado e
tranquilo. Tempo de descanso, ou de saborear o espaço, os espaços da nossa vida, aqueles que porventura habitamos, sejam casas sejam pessoas... e também o próprio, o tempo.
Mar duro ou mar pequeno, os dois do mesmo modo e razões díspares. Mudamos o registo, mas o amor é o mesmo.
É fácil a um surfista gostar da vida... ter-lhe paixão, ter-lhe devoção, sempre em doses, de superlativo mais que absoluto.
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