Mas o que estou eu aqui a fazer?

  


De vez em quando vem-me esta questão à cabeça, quando estou nalguma reunião estranha, evento estranho, estrada estranha, onda estranha, cheia de crowd estranho, comunicação estranha, trabalho estranho, situação estranha...

Julgo que nos acontece sobretudo quando há uma sensação de fim de ciclo, ou então quando estamos metidos em coisas estranhas ou novas (ou velhas e sem sentido), ou então, se temos uma natureza questionadora, desinstalada, como uma objectiva que está sempre a focar em pormenores diferentes, de perspectivas diferentes, mesmo que seja sobre uma única e mesma coisa.


Acontece no fim da nossa parte de qualquer mega projecto a que nos dedicámos, acontece depois de atingirmos um deadline qualquer a que nos propusémos atingir qualquer coisa. Acontece, sobretudo, depois de cumprirmos um sonho qualquer, ou mais forte ainda, depois de confirmarmos todos os vistos numa checklist deles, dos sonhos germinados num abrigo de sementes, há muitos anos atrás.

Acontece ao acabar um ciclo de estudos, ao acabar um trabalho, um emprego, um mergulho bastante fundo, ver lá outro mundo e ver cá, constantemente, que outros mundos existem e fazem tanto sentido como o nosso, colocam-nos em perspectiva, como se fosse o intervalo de um jogo.


Acontece ao voltar a Casa, onde já não iamos há uma vintena de anos, e conhecer a próxima geração, sentarmo-nos na escadas do jardim, onde tocámos neve pela primeira vez. Ver que das árvores enormes onde esfolámos tantas vezes os joelhos a tentar trepá-las já só restam as raízes bem sustentadas no chão que absorveu o sangue dos miúdos com o céu por limite, sem lhes dar descanso, aos joelhos e aos cotovelos. 


Acontece depois de momentos fundos. Ao viajarmos a um país, a um sítio, a um lugar, a uma pessoa, perceber outras coisas. Ao plantar árvores ou ao gerar vida, ao surfar um tubo, ao jantarmos uma noite tranquila junto dos nossos melhores amigos, fazê-los rir e rir com eles a noite toda. Ao tocar guitarra, tocar ukelele, tocar harmónica, tocar aquele instrumento de sopro que tem teclas e nem sabemos o nome (melódica). Ir a um concerto ao ar livre com amigos, ir a um concerto no coliseu com o teu pai. Trabalhar nalgum projecto desde o início e ver que ele começa a ter maturidade, a envolver muitas pessoas, e a mudar a vida de muitas outras que tu nem sequer conheces.






Ao ler, ler, ler.. outra forma de viajar. Ler artigos científicos ou técnicos de qualquer coisa porque tem de ser ou porque te apetece mesmo e apenas, ler artigos de um jornal, por inteiro ou só as gordas, que importa, ler artigos de uma revista qualquer e todos estes com o mesmo espírito de leveza, ler uma biografia romanceada de Cristo escrita por um teólogo da libertação, ao mesmo tempo ler um livro hilariante ao mesmo tempo que tenha um nome parvo como "as m*rdas que o meu pai diz" e não aguentar de tanto rir no segundo, de sorrir com cumplicidade no primeiro. Começares a dizer o que te apetece, sem pensar muito... ou então escolheres estar calado porque o silêncio é precioso, só para interromper com música falada, ou cantada mesmo (genialidades que dão trabalho a fazer nascer), seja em que voz for que valha a pena.

Escrever numa revista de surf.. e ter mais gosto nisso que noutras coisas mais conceituadas. Escrever um livro, trabalhar (ou brincar) num segundo sem nunca ter intenção de o publicar. Conduzir um Land Rover e percorrer caminhos que nem tu nem ele sabiam ser possível... só que juntos, descobriram. Dar mimo, ser mimado. Sentir preguiça, ser disciplinado. Ser selectivo com o tempo, ser selectivo com a música, saborear um romeu e julieta e saber que alguém esteve de volta dele, numa ilha distante, que nem sabia ler ou escrever, mas que enquanto o fazia, ouvia Shakespeare.

Chegar aquela altura em que já não ficas chateado com a evidência de seres imperfeito, por fazer asneiras, dizer asneiras, te enganares nas coisas e pedires desculpa sem falsas modéstias. Chegar a uma altura em que sofres asneiras, mas perdoas as pessoas porque tu também fazes e dizes asneiras, e, não por seres uma sumidade balofa da misericórdia. É natural esse errar, essa sensação de estar perdido, de fazer disparates burros. Tão natural como a energia um dia de sol e calor, tão natural como o aconchego de um dia frio e de chuva, de neve. Qual o melhor? Ambos...

Não comprar guerras, mas deixar de ter jeito para diplomacia. Medir cada segundo do tempo com um "vale a pena isto" e arriscar por vezes surgir a pergunta "mas que caraças estou eu aqui a fazer?" ao mesmo tempo que se maravilha com a beleza de tudo o que é comparável ou está acima de uma máquina de café americano que dá para programar para as xis horas ter o bule cheio de café a fumegar de aroma intenso, até à escuridão de um Rembrandt, a grandeza da Hagia Sofia e a simplicidade da casa da cascata, as formas de uma montanha, a perfeição de força de uma Onda, os sons de Coltrane, uma imagem captada e editada do Paulo, a inspiração de um hino e a imagem real de um garoto a jogar à bola no meio de uma rua quieta.

"Mas que caraças vai ser a minha vida?" ou "o que vem a seguir?" ou "o que vou deslindar desta vez? o que vai a imaginação aprontar agora?"... São boas perguntas.

Como escreveu Mary Schmich no Chicago Tribune, imortalizado no "wear suncsreen speech" que também marcou outro fim de ciclo, as pessoas mais interessantes que ela conhecera, aos 22 anos não faziam ideia do que fazer da vida. Algumas das pessoas que ela conhecia, tinham mais de 40 anos e continuavam a não fazer ideia do que queriam da vida.

Será este o cúmulo de ter os olhos abertos?


Uma coisa sei. Perder tempo com o que não valha a pena é uma certeza. Passatempos não são um forte que mereça ver a luz do nosso tempo e esforço... e quanto tempo as pessoas não gastam com coisas que não são mais do que passatempos..
Outra coisa também sei. Projectos, sonhos ou tretas viradas para dentro, para mim, também não valem a pena. O bom da vida, é virado para fora, para os outros. A nossa realização é fazer acontecer em nós, mas nos outros, na realidade e nas pessoas de que fazemos parte, ainda que o silêncio, o tempo doce de refúgio, seja um imperativo para isso.

Viver como se conduzíssemos um descapotável, daqueles antigos, clássicos, numa estrada longa de beira mar (como aqui)... é o melhor modo, sempre em contemplação de sorriso parolo, rodeados daqueles que amamos e que nos amam, de uma ou duas pranchas e uma mochila que apenas tenha o que é essencial.


Por mais alto que seja o voo... Proteger os nossos sonhos, proteger os dos outros, estes aqui de cima... Não deixar que nenhuma circunstância nos desvie disso, sempre, sempre para os cumprir, com o pragmatismo próprio de quem sonha e tem brilho nos olhos, mas caminha ao mesmo tempo.

O resto... virá quando tiver de vir e quiser vir... tão certo como o próximo swell.

















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